quinta-feira, 13 de julho de 2017

Patrícia Guimarães


Os mecanismos da memória e da associação de ideias são tão insondáveis que dispensam álibis e justificações. Não se explicam. Quando vi dois ou três trabalhos da Patrícia Guimarães lembrei-me do livro Animal Farm de George Orwell. Dando azo a congeminações, concluo que talvez tenha pouco a ver com o registo criativo da autora das imagens. Já a silhueta da figura do homem nu em fuga, que se confunde com os arbustos curvados pela força do vento, pode sugerir intrincadas fundamentações filosóficas. Não diria metafísicas, inclino-me mais para uma nota sobre a fragilidade humana. Fora de questão, julgo, aquelas coisas estranhas dos filme de Night Shyamalan em que a natureza aparentemente contemplativa ao olhar esconde uma ameaça sobrenatural. Chamemos-lhe o assédio do mal que nos espreita. A ficção é precisamente esse lugar onde as coisas são assim e não são assim. Adiante, adiante.
Na verdade, os desenhos protagonizados por soturnos senhores porcinos nos seus subtis rituais de poder exalam um certo encanto com sabor aos prodígios de Bosch que a artista referenciou como uma das suas possíveis influências. Oriundas do universo da pintura onde Goya também tem cabimento. "São jogos grotescos", diz ela que nem sempre acha necessário colocar títulos nas obras. Prefere "deixá-las falar por si mesmas". Sem os convenientes facilitadores de leitura. Chegámos ao reino das coisas implícitas, o que torna a narrativa muito mais interessante. Não falo do saltar logo aos olhos, há detalhes que pedem descodificação. Existe um equilíbrio entre tensão e serenidade, entre o dito e o não dito que aprecio. A palavra certa é contenção. Refinamento. E, num relance, afirmaria que os desenhos evidenciam competência e intuição plástica.
Estás envolvida numa aventura, rapariga? Às vezes dissecar projectos é uma forma de traçarmos auto retratos. Vamos a isso. Nasceu em Lisboa no ano de 1985. Fez o curso de Arte e Multimédia nas Belas Artes, perseguindo o propósito do desenho animado. Possuir uma educação formal, uma boa base escolar ajuda. Depois desata-se o nó das ideias que podem vir dos desajustes da vida, do quotidiano banal, da imaginação. E até das "parvoíces" dos programas televisivos matinais, como relatas rindo, que articuladas e inseridas num contexto inteligente adquirem consistência artística. "Parto de uma frase, de uma notícia...", sublinha Patrícia que ainda se sente na fase da procura. Soltos os genes, as histórias vão-se construindo bocado a bocado. Folha a folha. Gostava de as publicar, só que esbarra no "pequenino mercado português". Mas tem pinta de quem não desiste de aprender e de lutar. De conquistar um lugar no projecto de vida que escolheu. Por enquanto, "vou ao sabor da maré". Não é bem assim, até deu alguns passos em frente. Decidiu dedicar-se a tempo inteiro à sua aventura, na lógica de quem arrisca não petisca, e atacar os concursos que apareçam. Ganhou mesmo algum calo no assunto.
E sobre as experiências acumuladas, Patrícia, em que ficamos? Participou na concepção do filme de animação Vigil que foi apresentado na Monstra, na Cinemateca e no conceituado festival de curtas de Vila do Conde. "Integrei a equipa técnica, o lado conceptual era da realizadora. Fui apenas uma formiga no conjunto de pessoas que trabalharam no filme. A minha única experiência profissional resume-se a essa produtora onde estive durante um ano". Editou dois livros, em parceria com Façam Fanzines e Cuspam Martelos, uma espécie de fanzines visualmente cuidadas. Stabat Mater e Manuelinútil inscrevem-se num percurso curto, feito de persistências e da vontade de lhe acrescentar uma marca genuína. Concorreu ao Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, acabando por receber um terceiro prémio. Nada mau. Produz cartazes para o Teatro da Rainha das Caldas da Rainha. Neste momento anda atarefada com a tecitura conceptual de ilustrações para um concurso de literatura infantil promovido pela empresa Pingo Doce. Está em jogo um prémio no valor de 20 mil euros e a questão importante da visibilidade, tendo em conta a distribuição do livro a nível nacional. O nome do vencedor será anunciado até 8 de Setembro.
E as afinidades electivas? Dá-me pistas, Patrícia? Não vale a pena enunciar uma longa lista. Seria fastidioso. Bastam três. Lourenzo Mattoti? Hum! Sei que colaborou com Lou Reed na ilustração de Raven. As suas enigmáticas pinturas ajustam-se ao mundo dark de Edgar Allan Poe. Lança ainda o nome de Felipe Abranches que, entre outras obras, concebeu uma imagem amável do lobo-guará. E, finalmente, menciona a novela gráfica Persépolis que relata vida da iraniana Majane Satrapi. A preto e branco. E preto no branco, as convulsões da revolução fundamentalista islâmica. Na senda das genealogias culturais afloram outras interferências. Do cinema destaca Andrei Tarkovsky, o que se compreende atendendo às características estéticas e não só do cineasta russo. No campo literário e filosófico distingue o livro Monstros, um ensaio de José Gil. As opções musicais inscrevem-se numa faceta mais conservadora, embora previsível. Gosta de bossa nova, jazz e música clássica, esta uma descoberta mais recente.
Passemos ao lado prático. À actividade das ferramentas e técnicas. Ao momento decisivo em que a Patrícia, sentada na sua cadeira de realizadora, declara: Acção! Papel, tinta da China e pincel desempenham uma função fundamental nas suas lides criativas. "Uso o suporte que é mais confortável. Quanto ao papel tem a ver com a gramagem e a textura que procuro. Convém que não seja muito porosa". Prefere a tinta Lefranc que lhe permite obter aquele preto intenso. Da noite. Escura de breu. Bem selvagem. "Até cheguei a comprar tinta na loja dos chineses que custa um euro. E continuo a utilizá-la nos esboços e apontamentos. Não desvalorizo nenhum material, mas convém não esquecer o pormenor da resistência ao tempo". Nem da estratégia que a move num tempo em que há um sentimento de pertença ao tempo actual da arte. Naturalmente que absorve desse mesmo tempo, sem esforço e por inevitável osmose.
Voltemos atrás, à conversa dos porcos. Tudo começou quando visitou uma herdade no Alentejo e o anfitrião lhe contou que a engorda dos porcos exigia serem castrados. Assistiu ao acto da tradicional da matança. É então que a memória se acende e recupera os caminhos que a levaram até ali. Ou seja investir na fantasia. No gesto pleno em que os porcos são transportados para o estatuto de estrelas.

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