sábado, 9 de dezembro de 2023

Anette Barcelo: sem camuflagem


A exposição de Anette Barcelo com o título de Live Your Transformation que se encontra na galeria Madragoa até 6 de Janeiro foi apresentada pela primeira vez no Der Tank, em Basileia, com curadoria de Chus Martínez. A artista suíça usa a figura como ponto de partida para uma abstração distópica onde convergem intrigantes simbologias que se afastam da vulgaridade das convenções. Dos enredos ditos realistas. Do normal da via quotidiana. Em que o figurativo é usado como dispositivo retórico. Cores: preto, vermelho, azul, verde. Persiste na tela uma luz crepuscular, o que é muito significativo. Na linguagem da pintura a paleta desempenha um papel fundamental. As pinturas de Anette são uma abordagem de uma narrativa onde as formulações paradoxais se relacionam com aquilo que os surrealistas classificavam como "os sonhos psicanalíticos". Só que a inutilidade da beleza, seja a convulsiva revindicada por Breton ou qualquer outra, é acentuada naquela atmosfera povoada, eu diria, dos subalimentados de um mundo subterrâneo no sentido positivo que se conjuga com uma ideia de total liberdade criativa. ga  Criaturas bizarras, corpos mutáveis ou mutantes indefinidos por género mas inofensivos e com uma vibração bastante amigável. Good vibrations, como a canção dos Beach Boys. A partir de gestos pictóricos agregados, esses "monstros" simpáticos tornam-se personagens, não de poder e imposição pessoal, mas através da sua abjeção como plataforma de pensamento especulativo. Entrelaçam-se num jogo de arquétipos ausente de perversidade. Convidam a uma contemplação tranquila, logo que as tensões visuais se vão diluindo. Os personagens de Robert Walser, di-lo Walter Benjamin, "saem da noite, são personagens que passaram pela loucura". A propósito da Gata Borralheira, da Branca de Neve e da Bela Adormecida. Matéria de encantamento, o que não se vislumbra aqui, mas que eu utilizo como uma provocação. Desconheço a intenção do filósofo marxista alemão.
 Anette Barcelo debruça-se sobre um enredo onde se movimentam figuras antropomórficas que se insinuam pelo sarcasmo. Vejo-as assim. Convida uma trupe de marionetas, filhos do sono ou da psicologia, a participar numa montagem ficcional. Como nos filmes. São o combustível da uma estratégia criativa, da visão sensorial que sustenta o seu mundo artístico povoado de fantasias, puras emanações não da razão porque essa engendra monstros. Onde são excluídas lucubrações ou labirintos infernais da psique. Prefiro falar de uma viagem metafisica e carnal que encontra uma tradução discursiva e é incorporada na pintura da artista. E que, sem sombra de dúvida, fortalecem os códigos simbólicos que utiliza. Num distanciamento deliberado dos clichés e estereótipos que se reproduzem na Internet à velocidade da luz. Mas a singularidade anula o lixo. Vivemos numa época de retórica camuflada em que temos de escolher um lado. As imagens estão em constante mudança, evoluindo, circulando.  
Hábeis especuladores transformaram os ready mades na obra de arte. Repetir o gesto de Duchamp, abolir o conceito de obra e estipular o preço. As crenças liberais que sustentam o mundo da arte internacional e coincidem com a ascensão do neoliberalismo, estão a desfazer-se como gelo fino. Decidiam o que era a boa arte mas essa prerrogativa entrou em falência.  É preciso desconstruir algumas fraudes epistemológicas nas quais assenta uma parte da ainda atual teorização e prática da arte contemporânea. Há artistas que consideram que estão a fazer grandes experimentalismos e ruturas, julgam-se a vanguarda de qualquer coisa quando na verdade, na sua mediocridade e irrelevância ainda não perceberem que a vanguarda não existe. Na sua agudeza critica, o livro Post Conceptual Condition do filósofo marxista Peter Osborne marca uma rutura com o concetualismo.  "A ideia de contemporâneo é uma recusa da possibilidade de futuro presente."
 O contraste das corporações mentais que distorcem a vida interior é flagrante. As temperaturas emocionais vão ganhando espaço. A dificuldade de construir uma individualidade nova e radical é talvez um dos problemas mais profundos do nosso tempo. Com o fracasso da vanguarda, a necessidade de recusa e subversão é ainda mais urgente, agora que foi incorporada pela economia e convertida para promoção e lucro. 



Sem comentários: